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quinta-feira, 29 de novembro de 2007

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A Morte do Miguel
Por C. Barroco Esperança
DIA 27 DE JUNHO o Miguel teve o seu funeral. Caíra no Sábado anterior quando saía do casebre. Quebrou o fémur e ganhou um hematoma na cabeça. Transportado ao hospital faleceu no dia seguinte.
O funeral foi na terça-feira. O Miguel teve missa, flores que os amigos lhe levaram e os responsos canónicos antes de baixar à cova. Já não o acompanharam os pais e avós, que partiram antes, mas estavam lá os amigos que com ele jogaram à bola na Praceta, quando companheiros da escola primária onde começou e terminou os estudos.
Para os que acusam os jovens de egoísmo foi tocante ver os que vieram de longe, alguns bem instalados na vida, outros à procura de uma oportunidade. E eram muitos.
O Miguel é que não teve vaga. Não conheceu o pai, falecido quando ele ainda não tinha dois anos. A mãe esqueceu-o na amnésia da droga e não o recordou quando partiu sob o efeito de uma dose reforçada.
Os avós recolheram-no. Partiu primeiro a avó e não se demorou o avô. O Miguel ficou aos baldões da sorte, ao abandono, não lhe faltando os pontapés da vida nem a companhia de outros desgraçados.
Tinha 31 anos e mantinha os olhos de criança no rosto já cansado. Passou fugazmente por várias drogas mas foi no álcool que se fixou, em doses cada vez mais vastas. Se os amigos o saudavam, sorria com gratidão. E não deixou que lhe virassem as costas, foi-se afastando entre carros que arrumava e garrafas de cerveja que consumia.
Ainda teve tempo para fazer um filho. Foi amado. A mulher quis levá-lo para o cuidar, mas não quis ser fardo. Andou por aí, sem querer ser pesado, sem se queixar, a desfazer o fígado e a vida, a acelerar para o fim, com um sorriso que guardou para os amigos.
Na morte teve a mulher que o amou, vestida de preto, e muita gente: um arrumador no intervalo da ressaca, o director de um estabelecimento do ensino superior, o dono do café, jovens que após os cursos foram pela vida mas voltaram à Praceta para dizer adeus ao Miguel e lhe levar as primeiras flores que recebeu. E todos nos sentimos tristes com vergonha de sermos felizes.
Chamava-se Luís Miguel Neves Caldeira, de seu nome. Era tudo o que tinha com a roupa que trazia e um velho rádio de que fez testamento oral. Dele só resta o rádio e o raio da nossa incapacidade para criar um mundo mais justo.
Vi o edital que anunciava a missa do 7.º dia para as 18h30m, seis dias após a morte, pois o 7.º dia é quando um padre puder. Talvez a missa fosse pela remissão dos pecados de Deus. Para que outra coisa poderia servir?
«Jornal do Fundão» de 29 de Novembro de 2007

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