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quinta-feira, 8 de novembro de 2007

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O poder de encaixe das pessoas

Um romance anda a fazer-se. Há-de chamar-se Deus chega no próximo avião, mas não me comprometo. O primeiro capítulo será como vai aqui. Mas sem este visual de blogue.

*

Nunca hei-de perceber porque é que, tarde ou cedo, toda a gente rompe comigo. Até os mais íntimos, até os mais indiferentes. «Não dês as culpas logo a ti», consola-me a Noémia. Por vezes, insiste: «Tens tantas qualidades, tantas! Mas é isso também, acho que é isso, o que fere as pessoas.» E explica melhor: «Elas não aguentam o ciúme que lhes fazes.» A Noémia tem sempre estas profundidades.

A sério. Se há coisa que não entendo, são os invejosos. Eu posso ter, e de certeza tenho, todos os outros pecados capitais, mas a inveja é-me estranha. Invejar, invejar o quê? O que eu quiser conseguir, hei-de tê-lo por mim próprio. E se não, não. O mundo não acaba aí.

O caso do Luciano Malta, sirva esse exemplo. Jamais me apanhou a tratá-lo mal, tive sempre o cuidado de envolver em modos afáveis as reservas ao trabalho dele, convidei-o até várias vezes para almoçar. Era uma maneira de falarmos da família, dos gostos, da sua Constança natal, que tanto refere e onde tem ainda casa, falarmos enfim do que calhasse, tudo menos do trabalho. Porque, julgo eu, é assim, nesse terreno pacato, que os entendimentos crescem. Pois disse-me sempre que sim senhor, mas achou mil desculpas para nunca irmos tomar sequer um café.

E, ontem, foi o que se viu. Pôs-se aos berros, disse inconveniências, tudo diante dos colegas, e não me admiraria que na direcção lhe estivessem a ouvir os mimos. Por mim, fiz quanto pude para acalmá-lo, disse-lhe duas ou três vezes que sim senhor, tinha razão nisto e naquilo, fui mesmo ao ponto de propor trocarmos de funções: eu fazia as correcções mais miúdas, as vírgulas, a ortografia, mexia só em algum vocabulário, ele que amaneirasse depois os textos à sua vontade, falasse com os autores, decidisse com eles o produto final. Procurei ser desinteressado, mostrar que a minha posição ali não era tudo na vida, bem sabendo que a Irene, atenta ao ecrã, estava a seguir-nos a conversa, a sonsa, ansiosa por ver se era desta que eu me espalhava. Pois tanto me valia ter estado calado. Quanto mais terreno eu sacrificava, mais o senhorito perdia as maneiras. Que eu era um cínico, um impostor, um pedante, que hoje em dia «as letras do burgo», termos dele, não estavam à espera das camisas-de-forças em que eu sonhava amarrá-las, e que não era já a primeira vez, nem a segunda, que um autor da casa tinha ameaçado levar os originais a outras paragens.

«Luciano», disse-lhe eu, e quis dar a impressão de que procurava ainda as palavras. «Se as coisas, para você, estão já nesse pé, parece-me altura de a direcção ser avisada.» Parou o gesto, recuou, quase perdia o equilíbrio. Depois, desgrenhado, espumando incapazes raivas, despediu para lado nenhum a sugestão definitiva: «Vá pró car…». Deixou o dito assim, e desembestou dali, enquanto da pasta se lhe perdiam canetas de várias cores. A Irene ergueu ao céu os bem desenhados punhos: «Que mal fiz eu a Deus…» Mas também a eloquência lhe ficou por aí.

Ia eu buscar um café ao andar de cima, quando o dr. Cícero, no corredor, me barrou o caminho. «Chegue aqui». E fez-me entrar no gabinete. «Quer tomar alguma coisa? Toma, que vão sendo horas do meu uísque.» Senti que apreciaria que lhe apanhasse a graça, e eu fiz-lhe a vontade, embora sem o talento que tanto me favorece nestas ocasiões. «Você anda stressado.» Disse-mo, e logo sorriu, enquanto servia generosamente os dois copos. «Esse stressado, aposto, não lhe saía vivo das unhas.» Corrigiu: «Das mãos.» É esta a minha triste fama: a de puritano, a de castigador dos desbragamentos de linguagem. Não, nunca saberão eles a tolerância a que, desde há muitos anos, me venho obrigando.

«Sabe, Gildo», meditou ele, «o poder de encaixe das pessoas…» Mas foi sentar-se, mais propriamente caiu na cadeira, e ergueu o copo com uma indecisão que denunciava outros uísques no bucho. «À sua, Hermenigildo.» «À nossa, doutor Cícero.» O que era cerimónia a mais nas nossas relações. E o doutor atirou, fixando os infinitos, e englobando o Luciano Malta, a editora, a avenida dos Defensores de Chaves, o planeta, a parte reconhecível do universo: «Não ligue, Gildo. Até lhe ficava mal. Você está muito, mas muito, acima disto tudo.» Ficámo-nos olhando, como se algo de decisivo tivesse sido suspenso. Segundos depois, desatávamos a rir, regalados. Já só se falou do campeonato

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