A NOSSA LÍNGUA
Por Alice Vieira
LEMBRO-ME MUITAS VEZES daquela sensação de medo (e, depois, de vergonha...) que senti na primeira noite que passei em Chicago quando ouvi baterem insistentemente à porta da cozinha e os meus olhos avistaram, a toda a largura e altura do vidro da porta, o enorme rosto de um negro, cabelo em tranças “rasta”, fazendo gestos ameaçadores.
Eu estava sozinha em casa com quatro crianças que dormiam nos quartos ao fundo, o meu filho avisara que ia chegar tarde.
Imaginei-me no pior cenário do pior filme de terror (Chicago, Al Capone, bandidos, lei seca, estão a ver o guião...), tremia sem saber o que fazer — até que o Diogo, estremunhado, veio lá do quarto a pedir água, olhou para a porta e disse “Ah! É o nosso vizinho de baixo, é colega do pai na Universidade”.
Era.
E os tais gestos ameaçadores eram apenas gestos de um pai sozinho em casa, que acabara de descobrir que não tinha um pingo de leite no frigorífico e pedia ajuda...
A vergonha que senti acho que nunca chegou a passar durante as semanas todas que lá estive - nem mesmo depois de lhe ter passado para as mãos um pacote inteiro e, até ao fim da minha estada, ter tido sempre para ele o mais rasgado dos sorrisos.
Não há dúvida: somos instintivamente racistas, ou já estamos programados para o sermos.
Desta vez não estou em Chicago, mas na estação de metro de Sete Rios, passa pouco das seis da manhã, o quiosque do café ainda não abriu, faço horas para apanhar uma camioneta na Rodoviária mesmo em frente.
Diante de mim aparece um negro, cabelo em tranças, olhos pesados de sono e álcool, ar de quem ainda não se deitou.
Estende-me o braço e pede-me um cigarro.
Enfio a mão na algibeira e entrego-lhe o resto do maço, olhando em volta, mas em volta não anda ninguém, e ele pede lume e eu estendo-lhe o isqueiro, esperando que ele não repare na pouca segurança da minha mão.
“Obrigado”, diz, “muito obrigado pela sua amabilidade.”
E repete, “amabilidade”, repete devagarinho, separando muito bem as sílabas, “a-ma-bi-li-da-de”, e depois franze a testa, coloca-se bem na minha frente, e continua:
“É amabilidade que se diz? Não devia ser amavilidade? Pois se a gente diz “amável”, também devíamos dizer “amavilidade”. A não ser que a palavra venha de “habilidade”! Quer dizer: a “habilidade” de ser “amável”. “Amabilidade”.
E durante alguns minutos lá ficou naquelas altas filosofias matinais.
Já se afastara um pouco quando, de repente, volta atrás, deixa cair a mão pesadamente no meu ombro (meço um metro e meio e ele deve medir para aí o dobro...) e, enquanto eu olho desesperadamente em volta, exclama:
“A nossa língua é muito bonita!”
O quiosque já estava aberto, paguei-lhe um café.
Aquele “nossa”, pronunciado com tanta força, tinha-nos feito, de repente, irmãos.
Exactamente da mesma cor.
«JN»
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