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terça-feira, 13 de novembro de 2007

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A morte da adolescência

Então, o sol parecia mais quente. Mais sol. Não porque aquecesse mais. Nem necessário era porque o calor estava dentro de mim. Mas que era um sol mais forte, mais vivo, mais vivo que este que hoje me toca de leve, tantas vezes pálido e triste, lá isso era. Ou parecia…

Cada manhã saltava da cama para o ar livre. Para a última benfeitoria – a daquele ano – introduzida pelo meu pai na casa onde ele nascera, o acimentado terraço, onde começava o dia a saltitar, a fazer flexões, a abrir os braços e o peito ao ar ainda húmido, cacimbento, do dia iniciado.

“Vê lá, João Luís, não te constipes”. Eram os bons dias da minha mãe, espreitando as matutinas movimentações do filho, e preocupada porque me via despir o casaco do pijama, ficar de tronco nu, atirar o corpo empranchado para o chão frio para começar as inevitáveis flexões de braços. Era, também. o sinal de partida para umas corridas à procura de espaço no pequeno quintal, entre a minúscula vinha e as árvores, o poço e o tanque para regas e lavagens.

Mas não era só a minha mãe que por ali andava e me espreitava enquanto eu, ginasticadamente, acordava para mais um dia de férias. Também a Júlia, “a servir” em nossa casa desde o começo do verão, à experiência para ver se iria connosco para Lisboa, fazia parte da paisagem em que os corpos adolescentes eram o centro do mundo. Pelo menos, do mundo deles…
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Na sua lida doméstica, a Júlia ia buscar lenha para o fogão, ia tirar água do poço com a picota para os baldes que, depois, levava, cheios e um em cada mão, para a cozinha, onde se preparavam os pequenos-almoços, a que me atirava, sempre sôfrego, de passagem e em passo de corrida, pelo meio das actividades ginásticas.
A Júlia, nas passagens, nos percursos da sua “ginástica” de marcha com baldes cheios de água em cada mão, não escondia os sorrisos de troça, e o seu corpo parecia ganhar ainda mais vida e saúde.

E fazia com que uns salpicos de água saltassem dos baldes para as minhas costas, perturbando as insistências (insiste!, insiste!) das flexões de braços.

A aparente indiferença mútua era disfarce. Era mútuo desafio e era provocação, só insinuados mas cúmplices.

Aquele seu corpo, o modo como o vivia, como o fazia movimentar-se, bulia comigo, nos meus 17 anos.

E quantos teria ela? Tantos como eu, ou um pouco menos, ou um pouco mais, até porque o corpo feito mulher por vezes se escondia para logo se revelar, numa gaiatice, numa vontade de brincar em que havia uma criança a recuperar a infância não vivida.

Mas também não valia a pena perguntar quantos eram os seus anos de vida. Talvez nem soubesse ao certo, ou propositadamente respondia com evasivas “sei lá… parece que vou nos dezoito, já sou grandita… mas não vou às” sortes”… isso da tropa é p’rós rapazes… eles é que têm de saber a idade que têm”.

A vida fizera dela, depressa, muito depressa, uma mulher para quem a idade não contava. Parecendo vender saúde e força, era uma bela mulher. A meus olhos, pelo menos.

E era para ela que eu me exibia. Como para mim próprio, quando olhava os músculos em pose nos vidros das janelas. De soslaio. Com alguma auto-satisfação.
Cansado, suado, passava a uma segunda etapa. Como se fosse um ritual.

Descer o balde com ralo-chuveiro do camarão da trave do tecto da casa de banho, ir buscar o enorme panelão com água a ferver que estava em cima do fogão – ensaiando posições em que os músculos se valorizassem à vista da Júlia se estivesse por perto… e estava quase sempre -, encher o balde-chuveiro, temperar com água fria, subir a uma cadeira, elevá-lo e colocá-lo, cheio e bem pesado, no camarão da trave do tecto.

Era mais um exercício, e o último da sessão de ginástica matinal.

Depois, vinha o duche tão laboriosamente preparado.

Não sem que, antes, procurasse que o espelho, em posição estratégica, me dissesse quais os resultados de tanto exercício e preocupação com o corpo a atingir a sua exacta formação. Posições “à Charles Atlas”, a “tensão dinâmica”, com a ajuda do corpo já ensaboado e a semi-obscuridade.

Admirava-me como quem tem 17 anos (quase 18, quase 18, diria eu então...), se sente cheio de saúde e força, e se desconhece Narciso e a auto-crítica.

Era assim todas as manhãs.

Naquela quinta-feira…
Naquela quinta-feira, como em todas as quintas-feiras, era o dia de mercado semanal. Lá em baixo. Na vila.

O meu pai decidira – o meu pai decidia coisas! – que o almoço seria uma boa sardinhada. E também convidara amigos para um lanche. Ia ser um dia em cheio. E cheio de trabalho para a minha mãe e para a Júlia.

E tudo começava logo de manhãzinha, com a partida, cedo e preparada de véspera, para a vila.

Havia uma certa excitação no ar. O meu pai marcava o rutmo. A toque de palavras de ordem ou de franzires de sobrolho. Só teve uma hesitação ou dúvida, com prerrogativa de endosso de decisão para a minha mãe ”A rapariga também vai ao mercado?”.

Os meus sentidos concentraram-se na resposta, que a minha mãe deu, à sua maneira, não afirmativa, deixando as decisões definitivas para o homem “Como és tu que queres escolher as sardinhas e o que for preciso para o lanche, e pareces disposto a carregar com os sacos, é capaz de não ser preciso… há tanto para limpar e arrumar cá em casa… depois ainda temos o lanche…”, “Tá bem, ‘tá bem… despacha-te!”.

E lá passaram por mim, todo entregue à educação física (ou do físico). Ele, o meu pai, no passo largo e apressado de sempre, ela a minha mãe, logo atrás, em corridinhas de passo miúdo. Ele, a voz paterna, grossa “Não queres vir? Estás sempre a querer ir a Ourém… agora que fazia jeito, não deixas essa porcaria das ginásticas… ’inda me sais um Tarzan!”, ela, a voz materna, meiga “Até logo, filho… vê lá, não te constipes…”
Com a saída dos meus pais senti o ar da manhã (ainda) mais fresco, mais leve.

A Júlia já passara duas vezes. Para ir à lenha, para ir ao poço de onde trouxera os dois baldes a deitar por fora e a salpicarem-me as costas.

Os dois tínhamos acompanhado com aparente desinteresse, ou bem escondido..., as “negociações” sobre quem ia lá abaixo, â vila. Como se não fosse nada connosco, como se nos fosse indiferente.

Demorou pouco tempo a que a Júlia saísse da cozinha, com os dois baldes a caminho do poço. Naquela manhã a água gastara-se depressa…

Esperava-o. Pareceu-me ler-lhe um sorriso de desafio. Ou quis ler-lhe, no rosto, um sorriso de desafio.

Vieram palavras “em lugar de estar p’raí a fazer forças melhor era que m’ajudasse… isso é que valia a pena… tanta coisa, tantas forças, e se calhar nem é capaz d’acartar uns balditos d’áuga…”, “… até era capaz de te carregar a ti e mais aos baldes ao mesmo tempo…”, “… tamém q’ria ver isso…”.

Hesitei. Estava calor, de repente o ar pareceu-me pesado, tenso. Não, não era bem isso, seria mais a tensão inusitada dos sábados à noite do Vinicius de Moraes que eu “andava a descobrir”. Talvez tivesse parecenças…

Insisti nas flexões, que para isso servem, na expectativa dos pingos de água que viriam no regresso do poço. E não tardaram. Em vez do arrepio, a água escorreu no corpo quente. Fiz menção de lhe agarrar os pés descalços, os tornozelos, a perna forte, firme, de correr atrás dela e dos baldes e daquele riso galhofeiro.

Fugiu, com mais riso e mais galhofa, tudo mais vivo e mais alto que era costume. Fugiu para dentro de casa, numa corrida sem perseguidor. “Não tenho tempo p’ra brincadeiras… vou fazer as camas…”.

E começou a cantar, Com uma voz rouca, cheia de intenções no que dizia e como dizia. Ou como eu adivinhava ou inventava.

Nem me tinha levantado da posição de empranchado. Por terra. “Fiquei-me nas covas”, como se dizia na gíria do atletismo quando as partidas se faziam das covas… Mas ainda arenguei “qualquer dia hás-de pagar-mas todas…”.

A resposta foi um “ora, ora” como novo estribilho na cantiga não interrompida ora, ora… muito ameaça que pouco faz/ora, ora… pouco faz quem muito ameaça/ora, ora… se comigo queres casar vai pedir à nha mãe/ora, ora… se tens pressa em namorar nã no peças a ninguém/ora, ora...

A água fervia na enorme panela em cima do fogão de lenha. Dos quartos vinha ainda o calor dos corpos sacudido dos lençois e das cobertas. E a voz rouca, quente, provocadora ora, ora… vê lá nã te queimes nas brasas dessa lareira/ora, ora mais calor e menos ciscos tens no fogo da minha braseira/ora, ora...
Refugiei-me na casa de banho e no ritual do duche.

Mas chegava lá a voz que mais alto cantava e parecia perseguir-me.

Preparei o duche, com maior rapidez que o habitual, e deixei cair a água sobre o corpo suado que tremia. E não era de frio…

O cheiro bom ao fumo da lenha, que se misturara na quentura da água deu-me curtas tréguas na obsessão daquela voz, daquela mulher que adivinhava a fazer a minha cama.

Ensaboei-me todo, vagarosamente, e, esquecido do espelho, dos músculos, das poses “à Charles Atlas”, demorei-me a acariciar o sexo, deixando-o crescer, encher-me a mão. Comecei os movimentos que me levariam ao orgasmo, com a espuma do sabão a ajudar a fricção e a aumentar o prazer… Mas parei. Sem dificuldade.

Fiz escorrer o sabão, enrolei uma toalha à volta da cintura e regressei ao sol. Trouxe o espelho para o terraço e comecei, enquanto o sol me enxugava o corpo, a fazer as poses da “tensão dinâmica”, as duas mãos opondo-se e resistindo, torções do tronco em esforço, rodar a cabeça para os músculos do pescoço. Tentando concentrar-me. Não ouvir nada, não (pre)sentir nada.

Mas sabia que não estava só, que era observado pelo canto de uns olhos, através da porta da cozinha. Caíra um silêncio pesado em toda a volta. Ou só se ouvia o coração e as artérias batendo dentro dos corpos.

Era preciso dizer ou fazer alguma coisa, quebrar aquela crosta, sair daquele lago-pântano, saltar das areias movediças “ó! Júlia… há aí leite?”, “atão nã havera d’haver?... quer qu’aqueça?... com tantas ginásticas deve estar com fome… quer que lho leve?”, “não, não!... eu vou aí…”.

Em dois saltos, entrei pela cozinha adentro “ai, credo!, inté m’assustou… veja lá se lhe cai a toalha…”. Riu com os dentes todos. E os olhos. “Se calhar, vias alguma coisa que nunca viste…”, “… se calhar, via… se calhar, não...”.

Os nossos corpos estavam muito perto. Quase se tocavam. Ouviamo-nos as respirações. De costas para mim, a Júlia lavava a loiça do pequeno-almoço. Quando acabei de beber o leite, ao pôr o copo junto da outra loiça, deixei o meu braço roçar o corpo dela “olh’a louça!... ai a louça!”. E mimou um cuidado exagerado para que os copos, e os pratos, e as canecas, não se partissem, enquanto os nossos corpos se tocavam abertamente, o meu peito nu nas suas costas, sem mais palavras ou disfarces. O meu braço rodeou-lhe a cintura e apertou-a contra mim. Riu um riso outro, nervoso, e os nossos corpos moldaram-se. O meu sexo encostou-se ao redondo das nádegas bem desenhadas. As minhas mãos subiram até aos seios, e agarraram, e apertaram, e procuraram a carne quente e fresca, tensa.
“Ai a louça!... Olh’a louça!...”, como se a loiça tivesse alguma importância, como se fosse a coisa mais valiosa no mundo. “Quero lá saber da loiça… pode partir-se toda… quero-te é a ti!”.

Tentou (ou quis?) virar-se. Só afrouxei o abraço quanto bastasse para que se voltasse. Vi-lhe a cara afogueada, os olhos brilhantes, os lábios húmidos. Procurei-lhe a boca. Fugiu com a cara, simulou uma tímida resistência sem palavras.

Enquanto a apertava com um braço, procurava meter a mão dentro da blusa, já meio desabotoada, para chegar aos seios rijos e macios que saltavam do soutien. A toalha caiu-me aos pés, e o meu sexo em riste aninhou-se entre as coxas que, debaixo da saia, se entreabriam e apertavam.

Num cada vez mais estreito corpo-a-corpo, chegámos à minha cama, acabada de fazer, e mergulhámos numa confusão de roupa que se puxava, que se abria, se arrancava, desconhecendo botões, colchetes, molas.

Do silêncio sem palavras passámos às palavras sem sentido, às frases sem nexo, aos pedidos mordidos de boca a boca, às súplicas estranguladas, aos respirares ofegantes. A um ruído surdo.

Arranquei-lhe as cuecas já remendadas como farrapos velhos. Penetrei-a como quem rompe, como quem rasga. Era uma luta, uma batalha. Mas ela lutava comigo, não contra mim. E fincava as unhas nas minhas costas, acelerava com as mãos nas minhas nádegas os meus movimentos.

O meu orgasmo foi rápido, brutal, e inundou-a e à roupa da cama.

O nosso prazer parecia estar na corrida sem freio, não no prazer de correr. Estava no final da corrida. Ou talvez tivesse sido mesmo uma luta, uma batalha. Sem derrotados, mas em que a maior vitória seria a de quem começara por mostrar (ou mostrar-se) que resistia e, aparentemente vencido, se entregara. Mas qual de nós assim fizera? Ou tínhamo-lo feito os dois?

Aquele longo abraço, tão lutado e tão curto, durara a eternidade de uns breves minutos.

Ficámos de costas, lado a lado, olhando o tecto, vendo mais uma vez – mas com olhos diferentes – os desenhos dos nós da madeira.
“E agora?, e agora?”, perguntava eu. Aturdido. Queria gritar que fora a primeira vez. Que nunca antes…

De um salto, a Júlia levantou-se. “Agora… toca a arrumar e a arranjar esta cama antes que os paizinhos cheguem… salta daí!”. Foi uma ordem, como outras se seguiram, tratando-me, por vezes, por tu.
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Segura de si, tomou as rédeas do que havia a fazer, depois de um rápido roçar dos lábios pela minha cara e de um piparote cheio de malícia no meu sexo “toc’andar… vai-te lavar e vestir… enquanto dou aqui um jêto; mexa-se, corra!”

Foi uma correria para se pôr tudo como se nada tivesse acontecido. Como se nada tivesse acontecido!... Para a Júlia, até parecia, até parecia que a única coisa que importava era criar um ambiente neutro, inócuo. Como se nada se tivesse passado!...

Surpreendia-me o seu controlo total da situação.

Colocou uma cadeira no sítio certo do pátio, fez-me sentar nela, foi buscar livros e jornais que me meteu nas mãos e atirou para o chão, à roda da cadeira como se a leitura tivesse horas, apagou todos os sinais e marcas detectáveis, nela e em mim e nas coisas, com alguns pequenos gestos de ternura só adivinhada, acendeu a telefonia, arrumou a loiça do pequeno-almoço, começou a descascar batatas e a avançar com os preparativos do almoço.

Sorria…”bem podia ter dado uma mãozinha…”
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Foi só o que disse. Depois, ignorou-me, Era como se eu ali não estivesse.

Eu continuava aturdido. Lembrava-me como, quantas vezes!..., em conversas, na aldeia, com rapazes da minha idade, sentira uma espécie de inveja (e ansiedade, e temor) ao ouvir as suas experiências contadas com toda a naturalidade. E ouvira, calado, sem nada para contar em troca, rapazinho urbano, sem campos, palheiros, caminhos de escola com atalhos para outras brincadeiras…

Estava assim, absorto, quando os meus pais voltaram, carregados de sacos com vitualhas, para aquele dia e para a semana, até à quinta-feira da semana que a seguia a esta viria.

Tudo estava… normal. Larguei o livro, de que não lera uma linha, ajudei ao transporte das sardinhas e do resto, agarrei no jornal desportivo e voltei para o lugar que a Júlia me reservara na sua encenação.

“Não havia correio no ti’Xico?”. Era onde, então, a meio caminho da vila, se fazia depósito e distribuição do correio. ”Não, filho. Hoje não tinhas nada”, ” … o rapaz devia estar à espera de alguma carta perfumada…”.

Não me dei ao trabalho de responder. Tinha a sensação de que vivera um vendaval a que se sucedia a acalmia. Uma acalmia estranha porque ignorava todos os estragos feitos pelo que a antecedera, surpreendente por ser tão natural, por ter sido tão naturalmente instalada.
Depois daquela quinta-feira, no resto das férias, vivi um período difícil. Complicado. De obsessão.

Todos os meus esforços, toda a minha disponibilidade, toda a minha organização de vida, tinham o objectivo de arranjar tempo e espaço para ficar a sós com Júlia. E repetir, em todos os lugares e qualquer que fosse a hora, os mesmos gestos nascidos do desejo.

Ela sabia-o, e geria com grande habilidade o que parecia incontrolável. Moderava impulsos e excessos. Evitava riscos e aventuras, criava condições inimagináveis para que os nossos corpos se encontrassem e misturassem. Apressada, furiosamente.
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No fim das férias, no regresso a Lisboa, tudo se modificou. E tudo continuou.

A Júlia passara o “período experimental” e fora admitida ao serviço da casa, com aquele paternalismo que os “senhores de Lisboa” praticavam nas relações com a “gente” da terra. Relações em que também havia amizade mútua, que outra não há.

Mas era assim a vida de então.

E tudo mudou. E tudo continuou. Noutros espaços, não livres e abertos, com horários apertados, numa outra ainda mais difícil clandestinidade.

Na universidade, para onde entrara nesse ano, tinham-me colocado numa chamada “turma de empregados”, e as aulas práticas, a que não se podia faltar, começavam às 8 da manhã. Tinha de sair de casa pouco depois da 7, quando os meus pais ainda dormiam profundamente.

Levantava-me muito cedo, deslizava para a casa de banho, e muitas manhãs, quase todas as manhãs, era logo seguido pela Júlia, que ainda mais cedo se levantara e fora para a cozinha começar a labuta.

E eram manhãs loucas. Abraçávamo-nos quase com desespero, beijávamo-nos fazendo de cada manhã uma surpresa, num frenesim as nossas mãos trocavam de corpos e percorriam o do outro em todos os caminhos. Sentava-me na sanita e o seu corpo, rijo, belo, carnudo, fazia-se penetrar pelo meu sexo erecto, rolávamos na banheira ou nos azulejos do chão num abraço em que os dois corpos se misturavam com pijamas, camisas de dormir, toalhas, Sempre numa sôfrega correria, calando gargalhadas, amordaçando os gritos da explosão do prazer.

E a correr, bebido o leite e com a “carcaça” na mão, ia para rua e para o autocarro, enquanto a Júlia, com um controlo e uma eficiência espantosos preparava tudo para o acordar dos meus pais. Desde o apagar dos sinais das nossas “loucas manhãs” até aos pequenos-almoços e outras lidas.
A Júlia parecia cada vez mais segura de si. Cada vez mais controlava a situação. Um dia disse-me ”só não emprenho porque não quero… havia de ser bonito”. E riu-se!

Pelo contrário, eu estava cada vez mais obcecado, e havia obsessões que vinham juntar-se. Uma começava a tomar-me. Queria dormir com a Júlia. Deitar-me com ela na mesma cama e no mesmo sono depois de, saboreadamente, termos satisfeito os nossos insaciáveis corpos. Estava mesmo disposto a correr riscos. Ela ia adiando. “Um dia, talvez…”. Depois ria-se “... mas isso é só com quem eu casar… não q’eria mais nada!” E recusava que eu sequer entrasse, mesmo de dia, no seu quarto.

Estava a ficar desorientado. Andava na minha vida nova de universitário como um sonâmbulo. O que me valia era que, naquele tempo, o trabalho “a sério” só começava mais tarde, depois de “arrumados” os exames de admissão (de que eu dispensara) e outros da chamada “época de Outubro”.

Até que, de repente, no final de um dia cinzento do Outono lisboeta, a minha mãe, à mesa, ao jantar, disse que a Júlia se ia embora.

Assim. Como se fosse uma notícia indiferente, embora me parecesse descobrir um desconfiado espreitar para dentro da minha reacção. Talvez à espera de uma pergunta. Um talvez ansioso mas porquê?, talvez receoso da resposta.

A notícia fora dada como se se preenchesse um vazio, um silêncio à mesa que estivesse a incomodar.

Consegui controlar-me. Ou julguei que o fazia. O meu pai, calado, aparentemente desatento. Eram “coisas da cozinha”…

O silêncio tinha de ser cortado. Levei para a ironia que completasse o inevitável mas porquê?.

“Mas porquê?... partiu mais loiça que o regulamento permite?”. Com uma indiferença forçada. Com dificuldade de disfarçar e, talvez… sei lá, num tom que me trairia para quem quisesse confirmar suspeitas. Se é que havia…

Ela servia à mesa. Tirava e punha pratos. E fazia de conta que não reparara que se estava a falar dela e que as suas entradas e saídas, pontuavam as falas e os silêncios.

“Não, não! Pelo contrário… até estava a dar muito boa conta do recado…”
“… até estava a dar muito boa conta do recado… Mas vai para França… vai ter com o Xico da Soutaria, que foi para lá há para aí uns dois anos mas que veio cá neste verão. Às escondidas. Parece que acertaram tudo… Vão casar. Vai amanhã. De comboio. Arranjou papéis e tudo … A rapariga é mulher danada!”

O meu pai, já afundado no sofá coçado e perfeitamente afeito aos volumes do seu corpo, mergulhou os olhos no jornal, não sem antes ter deixado a sua sentença, resmungada e quase inaudível, mas que andava à volta de qualquer coisa como ingratos e mal-agradecidos.

A minha mãe continuou, como se nada tivesse ouvido mas respondendo a um e dirigindo-se – parecia-me… – a outro. “Pois é! Vamos ficar descalços… Mas já esperava. Não foi surpresa. Ela tinha-me avisado quando fizemos o ajuste. É namoro antigo… e se calhar eles apressaram-se… É lá com eles. Que sejam felizes. Nós cá nos arranjaremos. Não é, filho?”. Levantei-me da mesa, dei-lhe um beijo e fugi para o meu quarto.

Era verdade, lembrava-me bem do Xico, com mais um ou dois anos que eu, companheiro de brincadeiras de cachopos e, depois, da bola e dos copos. Do que me tinha esquecido é que, entre miúdos, se dizia que ele andava de beicinho pela Júlia, que a queria para conversada. Depois, como se, para mim, ele tivesse crescido de repente, soube que abalara “de salto”, esse caminho feito por tantos e tantos jovens da aldeia, alguns antes de irem às sortes.

Mas estava em estado de choque. Incapaz de juntar duas ideias. Já não sai do quarto, como às vezes fazia quando tinha matérias para estudar. E se tinha!… mas não eram da universidade.

Dormi mal, sobressaltado. De manhã, ainda mais cedo que o costume, levantei-me excitado, nervoso. Não queria tomar qualquer iniciativa. Vi que tinha sido o primeiro a levantar-me. Demorei-me na casa de banho. Ela não foi ter comigo.

Não aguentava mais. Arranjei-me à pressa e procurei-a. Estava na cozinha, atarefada, numa grande (ou simulada) azáfama.
Agarrei-a por um braço, tentei que me olhasse. “Júlia!... que se passa?… porque não me disseste nada?... porque não me dizes nada?... que se passa?... diz-me tudo?”.

Respondeu-me com um sorriso triste. Talvez o único que lhe vi. Os olhos estavam baixos, mortiços, sem desafio. “’Teja quedo. Veja lá a sua mãezinha que deve estar quase a levantar-se…”.

Escapou-se-me para o abrigo do seu quarto. Quase logo (ou foi muito tempo depois?) voltou. Recuperada. A Júlia.

Passou por mim, parado onde me deixara, imóvel. Deu-me um pequeno encontrão. "Acorde! Vá mas’é p’rás aulas. A sua mãezinha está mesmo a levantar-se. Veja lá se quer que ela saiba mais do que já desconfio que sabe…”.

Quase me empurrou até à escada e fechou a porta comigo do outro lado.

Ao passar, no canto da cozinha, perto da porta de serviço por onde saíra, jvi uma mala e uns sacos atados com corda forte que já estavam preparados para a partida.

No autocarro, a caminho da faculdade, uma lágrima teimou em escorregar-me pela cara abaixo. Sei, hoje, que algo da minha adolescência acabava. Em definitivo.
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Olhei aquelas três mulheres. A Júlia, a filha, a miúda, com os seus 12 anitos e tão parecida com a avó quando eu a conheci. Há bem 40 anos!

Pareceu-me ver, nelas projectado, um filme. Um filme em que eu entrava. Com um papel que não sabia muito bem qual era, qual tinha sido. Um papel que, estava certo, nunca viria a descobrir. Um filme que não era “cor de rosa” nem “negro”, um filme com todas as cores que a vida tem.
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FIM... do que talvez venha a ser um capítulo
de uma história mais longa

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